O foco dos direitos é um foco que incomoda. Basicamente, porque coloca sobre à mesa a dimensão política do ensino do esporte. Não vem discutir o método mais eficaz para ensinar um determinado saber, vem a discutir a distribuição do saber. E quando discute a distribuição do saber, inevitavelmente discute também as relações de poder. Na maioria das práticas desportivas (entre as quais incluo o mini basquete), esta relação saber-poder é muito transparente. Aqueles que sabem jogar têm mais poder do que aqueles que ainda não sabem. Basta olhar uns poucos minutos qualquer cena de um jogo de crianças, adolescentes ou jovens, para poder apreciar esta questão. O fluxo e a distribuição do jogo, a assunção de papeis, a quantidade de contatos com a bola ou o número de vezes que cada membro de uma determinada equipe finaliza com arremesso os ciclos de ataque (entre outros tantos elementos que podemos observar para analisar esta questão), ilustram de um modo quase inequívoco esta relação tão estreita que existe entre estes dois conceitos.
O saber gera as condições de possibilidade para poder fazer, para poder participar da tomada de decisões e para poder desfrutar plenamente do jogo. O não saber, gera todo o contrário. Daí a importância que cobra atender à distribuição dos saberes que colocamos para circular nas aulas ou sessões de treinamento de mini basquete. Porque distribuir ou redistribuir o saber (segundo o mérito do caso) supõe, como se diz, redistribuir o poder. E esta questão, retomando as palavras do início, quase sempre gera conflito e desconforto. Sobre tudo, naqueles grupos de aprendizagem nos quais os níveis de saber-poder não estão de tudo equilibrados.
Desta maneira, desde o momento que aborda a dimensão política do ensino, o foco nos direitos se vê inscrito rapidamente no coração de uma didática crítica da Educação Física e o esporte. E desta forma, não resulta casual que sustente a presunção (talvez alguém prefira substituir o termo presunção por certeza) que existe um conjunto de propostas de ensino das práticas desportivas (o basquete não costuma estar isento destas considerações) que não resultam nem democráticas e nem democratizantes. E não resultam nem uma coisa, nem a outra, por pelo menos dois motivos.
Por um lado, porque se abstém de regular o fluxo e a circulação de saberes ao interior das aulas. Abstenção que promove que sejam uns poucos sujeitos quem acabam por monopolizar os ditos saberes, e outros muitos aqueles que se vão com as mãos praticamente vazias e com seu direito a aprender absolutamente violado. Talvez porque não conseguem modificar a ordem social, geralmente estratificado e hierárquico, instituído nas aulas. Ou seja, não conseguem transformar as relações de poder que organizam a trama social das mesmas, e que incidem (dali sua enorme relevância) tanto na circulação como nos níveis últimos de distribuição e apropriação de saberes.
Sob esta filiação teórica (refiro-me à didática crítica), o foco nos direitos pretende abordar um conjunto bem amplo de problemas cujas respostas escondem as condições de possibilidade para que as aulas ou sessões de treinamento sejam mais justas e democráticas. Entre os mais extraordinários poderíamos mencionar: como democratizar o fluxo e o alcance dos processos de ensino de modo tal que todos os alunos e alunas, e não somente uns poucos, possam se apropriar plenamente dos saberes que estão em circulação durante as aulas. Como converter as aulas em espaços verdadeiramente habitáveis para todos e cada um dos alunos de modo tal que o fato de “ se animar a fazer aquilo que não se sabe” não se veja ameaçado ou vulnerado pelo contexto de aprendizagem. Como gerar as condições de possibilidade para que a diversidade, em qualquer de suas dimensões, não resulte condicionante das possibilidades de aprendizagem de nenhum aluno. E como favorecer e garantir uma genuína igualdade de oportunidades e evitar, desse modo, que se reproduzam, reforcem e/ou amplifiquem as desigualdades de base com as que os alunos e alunas ingressam geralmente às nossas aulas.
Atento a estes problemas, e ao fato de tentar procurar respostas genuínas, o foco de direitos parte por conceber as aulas ou sessões de treinamento desportivo como mercados nos quais se gera circulação, distribuição, intercâmbio e apropriação de bens. E entende que, se estes espaços sociais não são regulados ou sofrem intervenção, o que ocorre geralmente é que alguns sujeitos levam muito, outros pouco e o resto, nada.
De fato, este foco prescreve que os professores e professoras, enquanto responsáveis do governo das aulas, deveriam poder estabelecer um conjunto de orientações e/ou normas de caráter coativo baseadas em dois ideais: de justiça e de bem comum (leia, um Estado de Direito) que permitam regular o fluxo, o prêmio e a aquisição de saberes ao interior das mesmas. Do contrário, dificilmente os processos de ensino, ao menos tal e como têm sido concebidos até o dia de hoje, possam promover e alcançar tais ideais.
De uma só vez, desde o momento que equipara a aula com um mercado, o foco de direitos converte o saber em capital. Isto é, em uma moeda de troca cujos níveis de distribuição e posse ao interior dos grupos de aprendizagem geram condições diferenciais para poder ter acesso pleno ao esporte em quanto um bem da cultura física. O que se pode obter em troca desta moeda? Entre outras cosas: minutos de jogo, participação no desenvolvimento das práticas, lugar na mesa na qual se tomam as decisões sobre o curso das ações, acesso a situações nas quais é possível anotar (obtendo assim a possibilidade de experimentar esse prazer praticamente indescritível que geram esse tipo de situações) e, de uma só vez, a factibilidade de assumir riscos. Porque a possibilidade de poder pagar os custos de se equivocar durante o jogo costuma estar condicionada também pelo nível de capital armazenado por um sujeito.
Portanto, esta transmutação de saber a capital nos permite revelar que, a maiores níveis de capital acumulado, maiores possibilidades de extrair dividendos das aulas e de acumular, a partir dele, mais e mais capital. Daí que o foco nos direitos nos adverte a respeito da necessidade de estar muito atentos, e permanecer sempre alertas, a esta questão referida à distribuição e acumulação do capital. Sobre tudo, porque as possibilidades de acesso e de desfrute da pratica desportiva em geral, e do basquete em particular, estão atadas à posse deste recurso.
Até aqui só me ocupei analisando a incidência transcendental que tem o fato de “saber jogar” (ou seu oposto) nos processos de circulação e/ou apropriação de capital nas aulas ou sessões de treinamento nos quais se ensina esporte. E, a propósito desta questão, denominarei com o termo capital cultural (1) a este grau de expertise alcançado por um sujeito no campo das práticas desportivas.
Entretanto, existem outros dois tipos de capital acumulado e acumulável que otorgam interessantes vantagens nos processos de ensino e de aprendizagem desportivos, e que têm também uma forte influência nos processos de intercâmbio, circulação e apropriação deste bem da cultura física que é o esporte. Me refiro ao capital social e ao capital simbólico. O primeiro está conformado pela posse de uma rede de relações de conhecimento e reconhecimento mútuos (leiam vínculos e/ou amizades). Enquanto que o segundo se refere a uma série de propriedades mais intangíveis (como o prestigio e/ou a autoridade) que geralmente se consegue reunir depois da aquisição dos outros dois tipos de capital mencionados. Assim, se bem um sujeito pode contar com certas vantagens nas aulas a partir de contar com um grande capital cultural conquistado ao longo de sua biografia motora, também pode se ver beneficiado a partir de contar com alguma (ou ambas) destas outras duas formas de capital. É indubitável, por certo, que um determinado grau de capital cultural no esporte correlaciona quase diretamente com os outros dois.
Ou seja, um sujeito que “joga bem” ou “sabe jogar” costuma acumular (quase sem querer) um bom grau de capital social e outro tanto de capital simbólico. Fato que aumenta seu capital total de maneira exponencial. No entanto, em algumas ocasiões os sujeitos podem obter também certos dividendos das aulas e/ou das situações de jogo a partir da posse de certo capital simbólico e/ou social. Isto é, prescindindo do que aqui denominamos capital cultural. Mas a ameaça já está plantada, e o foco nos direitos está em alerta e avisa: “se no mundo do esporte, o saber jogar provém um capital que traz grandes benefícios a quem o tem, então, sem dúvidas, o que há que ser feito é recuperar e reivindicar o poder democratizador do ato de ensinar a todos e todas a jogar”.
A propósito destas questões que se referem ao capital e sua distribuição nas aulas ou sessões de treinamento, o foco de direitos revela também que o ensino dos esportes há beneficiado historicamente aos sujeitos mais avantajados motoramente, e que esta situação há contribuído para ampliar a brecha entre estes e os menos avantajados. Por vezes, provê a alguns sujeitos portadores de certas qualidades diferenciais (me refiro, sobretudo, a níveis mais avançados do domínio do esporte), tempo adicional para a prática, melhor infraestrutura para leva-la a cabo, melhores recursos materiais e humanos para sua formação, experiências variadas em competências desportivas, assim como altas expectativas a respeito de suas possibilidades de sucesso no futuro (entre outros privilégios), não há feito mais que agigantar as diferenças de nível entre os mais avançados e os menos. Daí que o foco de direitos desconfia da meritocracia. Por um lado, porque esta ideologia transmuta os privilégios em mérito. Isto é, pretende explicar certos rendimentos excepcionais que conseguem alguns sujeitos no esporte, recorrendo sistematicamente as variáveis como o esforço, o talento e/ou a essência, e evita considerar essas oportunidades e trajetórias excepcionais de formação que estes puderam transitar. Mas também descrê dessa ideologia, porque elude o impacto que têm as desigualdades de origem para poder ter acesso (ou não) aos privilégios mencionados.
De fato, a “teoria do mérito” há instalado no sentido comum a ideia que “todos os sujeitos partem do mesmo nível, e logo a competição termina por colocar as coisas em seu justo lugar e cada qual obtém o que se merece conforme o esforço que realizou”. Ou seja, “uma vez que a igualdade está assegurada, o mérito de cada sujeito produzirá, por si só, desigualdades que todos acabarão por entender como desigualdades justas”. Entretanto, tal e como se tentou ilustrar com todos os argumentos possíveis, essas desigualdades nunca são de tudo justa. Basicamente, porque desestimam as diferenças substanciais que existem tanto nos pontos de partida como nas trajetórias formativas dos sujeitos.
Alinhado com este posicionamento crítico a respeito da teoria do mérito, o foco de direitos vem a colocar também sob a lupa a clássica representação social a respeito do talento esportivo como uma questão inata, ou como um assunto que se explica a partir de fatores estritamente biológicos. Essencialmente, porque deixa nu (como já evidenciado de sobra) as enormes prerrogativas que experimentam alguns sujeitos para alcançar uns níveis superlativos de expertise no campo da prática esportiva. Este foco tenta que, na mesa de discussão sobre a etiologia do talento esportivo se contemple e se pondere o extraordinário peso que tem a biografia dos sujeitos (refiro às variáveis contextuais) na hora de explicar esses níveis excepcionais de rendimento desportivo. Não por nada, uma das frases que definem este foco é: “a biografia faz a biologia”.
Finalmente, o foco de direitos, reivindica o poder do professor ou professora para gerar uma transformação social em pequena escala. Basicamente, porque conta com a possibilidade de promover nos seus grupos de aprendizagem uma ordem social mais justa e democrática, de garantir o direito de todos a aprender, e de ampliar e equilibrar, a partir deles, os níveis de desfrute da prática desportiva. Tudo isso, por certo, a partir de instalar um conjunto de moralidades tais como: a inclusão educativa, a igualdade de oportunidades, o bem comum, o respeito à diversidade, a justiça na distribuição (ou redistribuição) dos saberes e a equidade, entre outras.
Por Diego Cavalli (especial para LG Básquet)
Tradução: Filipe Ferreira
(1) O uso que se dá aqui à ideia de capital cultural é bem diferente à conhecida concepção de Pierre Bourdieu. Para ele, o capital cultural refere a certas disposições culturais (modelos de conduta, linguagem, representações do mundo, valores, saberes e questiões referidas à aparência física e ao tratamento do corpo) cuja transmissão se produz, basicamente, no seio das familias. Aqui, por acaso, se concebe o capital cultural como o grau de expertese de um sujeito no campo do esporte, que é produto das oportunidades de aprendizagem (tanto espontâneas como intencionais) que há sido vivenciado ao longo de sua vida, e que lhes permitiram acumular um determinado número de horas de prática.
Em abril de 2025, acontecerá em Mar del Plata – Argentina, o 1º Train and Play LG. O evento inclui treinos, oficinas de arremesso, jogos competitivos, torneios de 3x3, todas as refeições, hospedagem e traslados.
Esta é uma lista de ideias para construir a identidade dos nossos times. Sempre é melhor trabalhar em bons processos.
Quem tem um bom arremesso desfruta mais do jogo. Mas arremessar bem é difícil e requer muito tempo de prática. Cinco dicas para jogadores. Cinco dicas para treinadores.
As crianças sempre querem jogar uma partida. Os professores querem que as crianças aprendam e se divirtam. Um exemplo para resolver essa questão.